Múmia cibernética





Vivenciar um exame de ressonância magnética (RM para os íntimos) é o mais perto que nós, pessoas comuns, filhos de Deus nascidos num país periférico e corrupto do mundo, chegaremos do futuro. Desse futuro de cinema: asséptico, artificialmente branco, luminoso e impessoal. Um porvir distópico, onde a máquina fala mais alto do que você. Aliás, emite sons inacreditavelmente estridentes e sua única opção é se submeter aos avanços da tecnologia. 

Isso pode ser bom então. Ser um país fodido, desigual e ignorante. O tal futuro apocalíptico nem chegou por aqui e vai passar batido. Existimos na eterna Idade Média: fita VHS engastalhada no vídeocassete ou a famigerada conexão de internet mixa que lhe deixa hipnotizado pela setinha a rodar, rodar, rodar... 

Você pensa que está pronta para segurar a onda quando os homens e mulheres futuristas lhe acomodam na nave. Tudo reluz a "2001, uma Odisseia no Espaço"; "Gattaca" ou "A Ilha". Fique à vontade para escolher sua distopia do coração. E para os que curtem uma teoria conspiratória imperialista, a RM é um prato cheio! Afinal, quem além deles, os vis ianques, para inventar um futuro tão abjeto para a humanidade!!! (As primeiras publicações a respeito do fenômeno da ressonância magnética foram feitas por dois grupos de cientistas americanos independentes: Felix Bloch e colaboradores, da Universidade de Stanford; e Edward Purcell e colaboradores, da Universidade de Harvard. Em 1952, ambos ganharam o Prêmio Nobel de Física por esta descoberta). 

Pois bem, você está prestes a experimentar o máximo de futuro permitido aos pobres do Terceiro Mundo. A máquina é perfeita, casular como um útero. Mas um útero frio da mãe de metal, pois nos anos 2000 é assim que tem de ser. 

Nem os foguetes são tão milimétricos. Muito pelo contrário: desajeitados, geringonças cheias de protuberâncias. Legos montados por crianças de cinco anos. As naves espaciais têm cara de ficção, porém o aparelho de RM é cena da vida real. 

Eles lhe entregam um botão para apertar caso deseje interagir com humanos; um “botão do oi”, sinais desses tempos virtuais. Não se mexa, o futuro já vai começar! E a festa Rave rola solta. Mixagens explosivas que colocam você em transe, choque ou ambos. O futuro não tem elegância musical. 

Você decide aproveitar seu tempo de múmia cibernética para mexer ao menos os olhos, num Trataka Yoga. Todavia, os homens e mulheres do futuro são Big Brothers que detectam os mínimos indícios de rebeldia. Uma voz impessoal enche o ambiente hospitalar, advertindo que é preciso ficar bem quietinho para que a experiência futurística seja bem-sucedida. 

Resta balbuciar todo o acervo de mantras memorizados no passado a fim de sublimar as investidas da máquina com trilha sonora invasiva e lobotomizante. Dá vontade de coçar a cabeça, o pé, o cotovelo. Entretanto, o futuro é despótico, patrulhador e repressor como os politica-ecologica-socialmente corretos: não pode! 

O botão do oi (ou seria do pânico) começa a se tornar a única saída para voltar ao presente utópico no qual não existem chatos de toda a natureza. Você está a um triz de apertá-lo quando um ruído harmônico e doce adentra o ambiente. É a porta se abrindo. Porta da esperança de ouvir: “seu exame acabou”! 

Sim, chegara ao fim a hibernação espacial de interminável duração. Os homens e mulheres robóticos me aprumaram de frente para o túnel circular do futuro, que me pareceu apenas oco. O que as imagens do meu joelho direito reservam para o meu destino? 

Enquanto a resposta não se apronta, vão perdoando o rol de bobagens que acabam de ler. Acontece que a vida só é possível reinventada, não é, minha cara Cecília? 




Comentários

  1. menina, fiz duas ressonâncias recentemente e eu percebi que aquele barulho de fundo cairia bem como base de alguma música eletrônica.. kkkk... foi o único jeito de me distrair :)

    Fabs

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  2. Esse é o pior exame que já inventaram, simplesmente horrível

    Cynthia Chayb

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  3. Ri muito da expressão "múmia cibernética"! KKK!

    Débora Cronemberg

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  4. Detesto ressonância! Na última vez que fiz, como o médico não sabia se meu problema era no quadril, cóccix ou lombar, pediu 4 exames!! E eu fiquei três horas nessa sessão de tortura. Pior, como me recusei a tomar contraste (o médico não tinha me dito que era com), ainda tive que repetir a da bacia, dias depois. Cruzes!! Sou peixes, mas não suporto ficar trancafiada nesse sarcófago-aquário!!

    Mônica Emery

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  5. O Carlos passou ontem novamente pela RM, ficou por quase 2 horas. Minhas definições de tortura foram atualizadas, quase 2 horas imóvel!

    Anna Luíza

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  6. É gente, todos esses exames (RM, endoscopia, colonoscopia, genicológico, de próstata, dentre outros), são extremamente desagradáveis, uma verdadeira provação, que começa com o preparatório e suas técnicas, beiram às torturas medievais (o de mamografia deve ter sido inventado por homem que odiava mulheres ou tinha muita inveja de suas mamas...), mas, enfim, necessários...

    Marilena

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  7. O bom que seus textos são ótimos!

    Cecília Soares

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