Backwarding





Por causa de um episódio do Masterchef no qual os concorrentes foram desafiados a preparar torteletes de frutas, voltei ao passado na 715 sul, tentando me lembrar do nome da negra que falava português de Portugal e vendia tortinha de morangos e suspiros de tirar suspiros da garotada. Ela morava na casa bem em frente da casa da minha tia Leila, na parte superior da quadra. Passávamos dias e dias juntando moedinhas para poder comprar as tais delícias. 

Mandei um zap para Leila, ela deveria se lembrar do nome da quituteira que, se não me engano, tinha vindo de Angola. Sim: dona Natalina! Para a criançada era um Natal de sabores aquelas tortinhas delicadas e vermelhinhas, num tempo em que morangos eram iguarias caras e raras. 

De dona Natalina para as outras figuras diferentes da 715 sul foi um passo. De repente, me lembrei do amigo do meu irmão Eduardo que só vivia de calção de banho, se exibindo para quem quisesse ver... Era uma estátua de sunga amarela no meio do gramado o jovem rapaz. Nem sei se era bonito, mas se achava. Pensando bem, ele era parecido com o He-Man, hahaha! Taí um apelido apropriado, caso o desenho animado já fosse uma referência. 

Havia o sr. Vitalino, de outra casa de esquina. Ele sofria de vitiligo e isso era estranho para as crianças que não tinham a mínima ideia do que se tratava. Um negro manchado de branco, por quê?

No mesmo bloco da minha tia, morava a benzedeira da quadra, dona Diná. Velhinha franzina e simpática, mãe de um cara que era uma lenda: Jorge Maluco. Jorge Maluco se assemelhava a um Jesus Cristo morenado pelo sol. Seus cabelos caindo pelos ombros, sempre sem blusa pedalando sua bicicleta... As más línguas diziam que ele traficava drogas. Será? Talvez. Mas traficante nos anos 70 era do tipo inocente, comparado aos criminosos profissonais violentos de hoje.

Tia Leila me confirmou que dona Diná segue vivendo na casa onde levei Tomás e Rômulo para serem benzidos a contragosto do pai cientista incrédulo. Se já me parecia encarquilhada há dez anos, imagina agora...

Não poderia deixar de mencionar tia Denize, a grisalha fada encantanda que nos ensinava artesanatos miles. Sua casa era meu refúgio, pois sempre me atraí por bruxas do bem. Tia Denize me hipnotizava com sua sabedoria e doçura. Sr. Celano, marido dela, também era uma peça. Ia e vinha do antigo supermercado Jumbo (atualmente Pão de Açúcar) com a sacola de papel lotada sobre a cabeça em perfeito equilíbrio. Ele era capaz de trazer uma melancia no cocoruto por mais de meia hora, caminhando suavemente ao atravessar a W3 sul. Pensa na farra para a gurizada!

A quadra 715 sul... Micro universo classe média baixa que me forjou em meio a maioria de cariocas e nordestinos. Ali, as famílias grandes eram regra. Então não me sentia tão deslocada sendo a caçula entre seis. Cachorros abundavam nas ruas, assim como crianças criadas soltas subindo em árvores, brincando de polícia e ladrão, pique-pega, carniça, pique-esconde e queimada.

Atrás do bloco E, o meu bloco, havia um parquinho bem cuidado por um senhor com pinta de polonês (se não me engano era mesmo). Ele tomou pra si a missão de manter a roda, os balanços, o trepa-trepa, dois escorregadores e o vai-e-vem sempre tinindo de novos, pintadinhos de cores vivas, engrenagens bem lubrificadas. 

Na casa da esquina defronte à nossa, morava a família dos irmãos Mônica e Marcos. Eles eram jovens quando eu era criança e a mãe deles, dona Matilde, morria de ciúmes da dupla de pequineses mais chata do universo. Raça da moda nos anos 70, ainda bem que lá ficou. Cachorrinhos insuportáveis e horrorosos!

Eduardo, meu jovem irmão popstar, tinha amigos saindo pelo ladrão (alguns talvez até fossem pivetes de fato). Os apelidos, ao menos, me soavam suspeitos à epoca: Micão, Zinho, Ná, Vasco, Curumim, Guta, Júnior Bill e tantos outros que agora não recordo. Remexo nas memórias e vislumbro a diversidade daqueles rapagões... Um deles tinha um defeito no nariz, que não tinha septo. Era baixinho e fanho, evidentemente. O rosto como se tivesse levado uma direita de Mike Tyson.

Em outra esquina (a quadra tinha mais de uma dezena de blocos de casas geminadas), vivia a família Coqueiro. Achava muito divertido o sobrenome, levando em consideração que mais pareciam um bando de alemães aloirados e altos (coqueiros albinos, quem sabe?). Era uma penca de irmãos cujo o pai era dono de uma oficina mecânica de certo prestígio chamada, claro, Coqueiro. Um dos filhos, João, era amigo do meu pop irmão. O cara gostava tanto de corrida de fórmula 1 que batizou o primeiro rebento como Gille Villeneuve.

Deus do céu, quantas reminiscências uma tortinha de morango é capaz de resgastar...



Comentários

  1. Isso é Proust à queima-roupa, né prima? As tortinhas de morango foram suas madeleines. Te fizeram viajar no tempo e no espaço. É por isso que aquela cena de Ratatouille nocauteia todo mundo. Aquela do crítico resmungão que volta à infância na primeira mordida do prato de mesmo nome. É uma questão mundial. Intergaláctica, talvez.

    Valdeir Jr.

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  2. Legal, Lu a sua memória! Era bem isto mesmo que vc escreveu! Bons tempos, uma época que se podia brincar nas ruas sem preocupações.

    Leila

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  3. Ah que gostosas lembranças,Lu...e vc como ninguém relata tão bem que me faz recordar minha chegada aqui no ano 72, vinda do Rio...😘🙏🌷💜

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  4. Não cresci em Brasília, mas no Rio. Entretanto, viajei no tempo com seus relatos, Lulas (como diria Catarina... rsrs), e tentei percorrer mentalmente suas experiências nesses locais. Gostei. Beijos!:)

    Marcita

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