Dilemas







Uma das preciosidades do acervo da Morgan Library, em NY, é o único livro escrito pela então escrava Phillis Wheatley. Rômulo estava estudando sobre a autora na escola pública de White Plains.

Mas quantas décadas ainda precisaremos para reparar o perverso problema da escravidão, geradora do racismo/preconceito (ou teria sido o contrário, a velha questão do ovo e da galinha)?

Ontem me pus a pensar sobre a questão novamente, quando fui colocar Romulito para dormir. Ele está lendo "As Aventuras de Tom Sawyer", clássico da literatura norte-americana, aliás, do mundo, escrito por Mark Twain. Resolvi ler algumas páginas com ele, em voz alta, quando me deparo com seguinte trecho:

"- Ora, ele disse a Jeff Thatcher, e Jeff disse a Johnny Baker, e Johnny disse a Jim Hollins, e Jim disse a Ben Rogers, e Ben disse a um negro, que foi quem me disse. É isso aí.
- Ah, foi, é? Todos eles mentem. Só não sei o negro, pois não conheço ele. Mas nunca vi um que não mentisse."

Ler essas afirmações em voz alta me deu uma angústia, uma espécie de dor no estômago. Estava chocada. Tamanho racismo proferido inocentemente por uma das personagens infantis mais reverenciadas do planeta me levaram a matutar: gerações e gerações de crianças cresceram lendo essas mesmas páginas; introjetando os mesmos conceitos aberrantes sem ter pai e mãe -
ou ainda professores - a lhes explicarem o contexto histórico do abjeto juízo de valor contido na obra. Pior: muitos professores e pais nem enxergam a perfídia e vivenciam o ódio desde criancinhas.

Lembrei da discussão sobre a censura aos textos de Monteiro Lobato exatamente pelo caráter rascita delas. No Brasil, milhões de crianças foram embaladas por ideias preconceituosas proferidas por personagens carismáticas. Quanto estrago sem nos darmos conta!!

Confesso que me sinto confusa. Sou contra qualquer tipo de censura à liberdade de expressão, mas será de fato concebível uma literatura, ainda que presa em seu contexto histórico e social, seguir pregando conceitos obtusos?

Ok, era o discurso-padrão das elites intelectuais à época, porém, persite o dilema maior: devemos reescrever os grandes clássicos da literatura mundial, suprimindo afirmações semelhantes ou simplesmente parar de lê-los? As obras perdem sua importância literária por serem racistas?

Talvez só outras luzes de outras leituras e o debate incessante sobre o tema possam minimizar as trevas da intolerância nesse mundo que caminha cegamente...






Comentários

  1. Lula´s, você levantou temas para um seminário.
    Reescrever essa literatura seria reescrever toda a história do homem.
    A questão é rediscuti-los ...

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  2. Boa tarde Luciana!
    Texto muito bom e observação tb, que fazer?

    Paula Mello

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  3. Lu, gostei do seu texto. E a minha resposta à sua pergunta seria não, não podemos excluir essas leituras tão importantes. São retratos de uma sociedade, e devem ser estudadas com esse olhar (acho até que você já escreveu pensando nisso né?). Ninguém vai perpetuar racismo porque estuda essas grandes obras. O que se deve fazer é estimular nas crianças o senso crítico sobre os temas tratados. Aí sim teremos uma sociedade desenvolvida. Censura é sempre retrocesso. Mas é a minha opinião né?
    Falo por experiência de quem começou a dar aulas e está assustada com o baixíssimo nível crítico de nossos universitários. Leitura zero. Crítica zero. Muito google.
    Deve estar sendo uma experiência incrível para os meninos hem, ler essas obras no original! O máximo!
    Bjs!

    Ana Claudia

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