Postagens

Mostrando postagens de 2016

Deo Gratias!

Imagem
A luz amarelada do Outono invadia o piso da sala, além do meu coração. A campainha toca, abro a porta. Ele adentra o corredor do apartamento com a serena presença de sempre. Um frescor distante da minha melancolia.  O lanche da tarde já está sobre a mesa. Ele se senta e começa a mordiscar o pedaço de bolo, conversando sobre o dia na escola. Me posto à sua frente e observo seu rosto de anjo bem esculpido pelos artistas da genética. Meu filho, seria mesmo meu? É uma dádiva. Um menino pronto, bem acabado em forma e conteúdo. Está tão crescido, pubescência. Entretanto ainda resguarda a infância em algumas atitudes, como pedir ao pai ou a mãe que lhe desejem boa-noite ao pé da cama. Será que teria sido uma criança como ele se tivesse tido uma família a me contemplar com olhos de benevolência? De onde veio a completude desse quase rapaz? Ele gosta de presentear as pessoas, fazer surpresas. Agora mesmo chegam mensagens dos amigos do colégio em Brasília, embevecidos com os sou

"Lá vem o pato, patiti, patacolá..."

Imagem
"And it's all over now, baby blue". Não adiantou o Nobel premiar Bob Dylan como um alerta, uma aviso para deter o horror, o horror. Não adiantaram as denúncias de abuso sexual: milhares de mulheres foram às urnas para eleger Trump. Quando vi uma brasileira que vive na Flórida dizendo que iria votar em Trump por causa de seus valores, tive a certeza de que ele venceria. Se em um estado progressista e libertário como Nova Iorque era possível ver centenas de carros e casas estampando adesivos de Trump, o que dizer dos EUA profundo? Deu no que deu. E agora a Idade Média se globalizará... Foi só no que pensei hoje, ao acordar: em como a história é cíclica. Só não estava a fim de viver isso nesse momento. Talvez na próxima encarnação, mas não já. Nem ligamos os telejornais brasileiros hoje cedo. Acordamos deprimidos. A impressão que tenho é de que estou revivendo toda a loucura de 2001, com a vitória de Bush arrastando o mundo para a radicalização islâmica sem precede

"Se você disser que eu desafino, amor..."

Imagem
Enfim o ontem chegou, recheado de coisas especiais, como o aniversário de 4.0 do meu sobrinho primogênito e também a primeira aula no "Women's Vocal Ensemble" do Conservatório de Música de Westchester.  Eu e minha boca grande ou cara de pau, no que fui me meter? Entro no Conservatório, que fica pertinho de casa, alguns quarteirões na noite densa (apesar de ainda não ter dado sete e meia). O rapaz da recepção me explica que devo subir a escada e entrar na sala 200. No caminho, vou passando por maravilhosos instrumentos sendo executados por alunos aplicados em salas de ensino individual. Uma atmosfera que já dava uma pista de que ali ninguém brinca em serviço. Alcanço a porta da sala de ensaios e vislumbro cinco mulheres aguardando sentadas debatendo a atuação de Tom Hanks no filme Sully. Entender inglês eu entendo perfeitamente. Meu ouvido já é capaz de acompanhar todo o debate HillaryXTrump sem necessidade de legendas. Era a primeira vez que eu es

Gratitude

Imagem
Quando moramos aqui em 2001/2002, não existiam as mágicas redes sociais. Os e-mails eram a forma mais moderna de interagir com os amigos e parentes, mas, ainda assim, poucas pessoas o utilizavam fora do ambiente de trabalho. Não era fácil tirar e enviar fotos, pois os celulares mal tinham saído do forno e não traziam com eles câmeras bacanas para viralizar imagens.  Agora, posso compartilhar com vocês todo o esplendor do outono em NY. É impossível descrever a magnitude da natureza nessas bandas de cá no mês de outubro. Quero parar o carro de minuto em minuto para registrar o que meus olhos podem ver e repartir com vocês essas visões idílicas inacreditáveis.  Ao caminhar, pareço uma weird americana, parando a cada árvore, a cada raio de sol que bate numa folha tornando-a mais púrpura, mais alaranjada. Frida não me compreende, quer seguir andando. Deixe de ser chata, Frida!, reclamo em bom som, me tornando ainda mais esquisita aos olhos dos que cruzam comigo pelo cam

Calor sensível

Imagem
O dia está tão bonito que não encontra adjetivo. O frio faz cócegas nas bochechas dos passantes. O Sol brilha na exata medida da retina. Alguns amigos distantes comunicam a morte de seus bichos do coração na semana em que se celebra São Francisco de Assis. Penso na poesia da coincidência e imagino o Irmão Sol recebendo os diletos animais com seu generoso abraço fraternal. Penso também em Frida, claro, não a Khalo. Em como o olhar dela consegue me arrancar da autocomiseração e buscar o mundo exterior. A imensa tela do cinema me instiga: "What's your favorite thing on the Earth?"  Talvez o universo no qual o planeta flutua ordenado e perene? Quem sabe os raios solares do outono no Hemisfério Norte a nos aquecer sem nos ferir? Ou seria o inesperado calor humano da colega de classe japonesa ao perguntar: "Se eu conseguir um apartamento maior em Tóquio, como eu quero, você vai me visitar?" Todas as alternativas estão corretas.

Conto de Deer

Imagem
As manhãs de segunda são fadadas ao sono excessivo e ao resmungo. Sem falar no atraso e no esquecimento das coisas. As manhãs de segunda só não são mais excruciantes do que as noites de domingo. Então a indefectível manhã de segunda apareceu, com suas chatices habituais (os dias da semana também gostam de rotina, provavelmente). Tira os meninos dos sonhos, corre com o café para não perder o bus school , atira o pijama em cima da cama...  O trajeto familiar rumo ao norte do estado de Nova Iorque é o diário: sempre bonito, bonito que enjoa. Nada de novo no dia que começa cinza até que ele salta na frente do carro: uma aparição do verde da mata para o chumbo da highway . Ele salta e meu grito salta com ele. Um grito de assombro e maravilhamento. Estanco o fôlego, suspense: será que ele consegue chegar do outro lado nesse vai e vem de carros enormes na hora de pico? Um cervo, majestoso e volumoso, é flagrado pela retina na segunda-feira. Não é uma pedra no caminho, mas

Valei-me, Nilse!

Imagem
A louca dos patos está lá. Não, ela não é louca e nem os patos são patos, mas gansos canadenses. As imprecisões de sempre, os rótulos. A fuga confortável. Mas me incomoda ela ocupar a parte potável do espelho d´água com suas visitas diárias. Ela leva uma cadeira e um laptop. Ela conversa com os bandos e, a despeito de uma placa pedindo que as aves não sejam alimentadas, ela lhes dá de comer, a mulher desgrenhada, Dian Fossey dos plumados. Desse modo, tenho de escalar umas pedras pontiagudas com Frida para que ela possa refrescar a garganta com a água do lago. A caminhada é puxada para as perninhas curtas da corgi, mas se não fosse Frida, talvez nem sequer caminhasse, sucumbida pela melancolia do subúrbio. A ressaca pós o excesso auditivo, olfativo, visual e tátil de Manhattan deriva numa inércia que beira o intransponível. Mas Frida me olha com olhos de súplica pela brincadeira e saio da autocomiseração para o mundo lá fora, que ainda está bonito, não muito quente anymor

Surprise

Imagem
A senhora atrás do balcão era o fenótipo da americana culta. Alva, quase transparente, com a típica educação polida + simpatia de giz que os americanos brancos têm. Estava no Music Conservatory of Westchester, a dois quarteirões da nossa casa, para pagar minha matrícula no Coro de Mulheres.  Ela perguntou o meu nome, expliquei que já havia preenchido todo os formulários pelo site (aqui você preenche formulários extensos e chatíssimos para tudo, inclusive para se inscrever em ensaios de coral). - Last name? - Assunção A senhora repetiu assunção com uma familiaridade impossível para os americanos. Depois, repetiu Luciana perfeitamente, me deixando muito confortável. Só no final do atendimento, a danadinha me disse que era portuguesa, do arquipélago dos Açores. Mais um caso de "quem vê cara, não vê coração".

"Bitter Sweet Symphony"

Imagem
Momentos de euforia, momentos de banzo. Quem passa pela experiência de estar exilado da terra-natal vive nesse revezamento olímpico. Para alguns, dura mais do que para outros. Não lembro quanto tempo levei da primeira vez para me sentir menos desconfortável nos EUA. A impressão é que envelheci para me meter nessa gangorra emocional. Sinto-me enfastiada como se já tivesse feito tudo o que eu precisava fazer: oba, as férias acabaram, vamos voltar pra casa? Sinal visível de rabujice como os cabelos brancos que insistem em aparecer sem serem chamados. Ainda bem que aqui na CVS Pharmacy você encontra um spray da Loreal que disfarça bem aquelas entradas grisalhas. Poderia existir um para disfarçar tédio e mal-estar. Outro dia Tomás pediu que a gente colocasse música brasileira. Rosa Passos trouxe um conforto auditivo que fez bem até ao estômago, comida de mãe, mingau de maizena. Hoje fui eu quem corri para o spotify e tasquei Marisa Monte. Não podia suportar mais nenhuma nar

Groundhog Day

Imagem
Estava tudo azul na manhã de segunda a caminho do aeroporto JFK. Bernardones iria cruzar o país leste-oeste para uma conferência em Santa Bárbara, Califórnia. Deixei o rapaz no terminal 4 e apertei o GPS com destino casa. Pra quê... Teve início a jequice do dia. Para evitar pedágios, o GPS me enfiou na Queensboro Bridge, a mesma que atravessamos para visitar a amiga Agnes no Queens. Peguei um puta congestionamento porque todo mundo quer alcançar Manhattan na segunda por volta das 9h30 am. "Fui fondo", "fui fondo", seguindo o GPS pela FDR (Franklin Delano Roosevelt Drive) no sentido norte, mas, de repente, algum acesso fechado - sempre tem alguma coisa em construção ou reforma em NY - e o GPS começa a recalcular a rota. Você não pode ficar parada no meio do trânsito com a sua banheirona Subaru e não tem acostamento e não tem via de escape e não tem vaga e você perde a saída certa e, de repente, está voltando para o mesmo caminho da Queensboro Br

Unforgettable night

Imagem
Tô assistindo a abertura dos Jogos do Rio no delay. Os comentaristas da NBC estão gostando do que estão transmitindo . É engraçado ler no FB tudo o que já aconteceu e que eu tô aqui lutando pra permanecer vendo... O sono está grande, mas não posso perder a primeira e última Olimpíadas da minha vida no meu país. Acho que foi uma abertura digna. Bem melhor do que a da Copa, muito fake. Hoje foi mais brasileira. Afinal, quando o mundo pensou em testemunhar Gisele B. pulando de alegria, descabelando como qualquer mortal no meio da galera? Adorei! "In Brazil, fun is contagious, joy is contagious. They did very well". Certamente, nosso maior patrimônio é essa espontaniedade afetuosa. Para uma menina que cresceu amando Jogos Olímpicos alhures, é arrepiante ver a primeira Olimpíada da América do Sul acontecer no Brasil (ainda que agora seja eu a estar alhures). Vida, sua irônica! Difícil foi dormir com o nariz entupido ontem, depois da meia-noite, momento em que

NYPD

Imagem
Não sei se as coisas inacreditáveis acontecem comigo porque gosto de escrever ou se é porque a Lei de Murphy me ama. Anyway, tava aqui no apê atacando de diarista nesse verão insano enquanto aguardava o técnico da Verizon que viria instalar a Internet e a TV a cabo.  Dou uma chegada na varanda e vejo um monte de carro de polícia ( a foto já foi postada aqui). Logo depois, estaciona o furgão da Verizon. Um branquelão de dois metros sai da van e eu aceno para ele. Ele acena de volta e brinca: espero que tudo isso (a polícia) não seja pra você. Eu digo: também não.  Desço pra abrir a chatice da porta com senha. Estamos os dois na porta do elevador pra subir quando ela se abre e aparece uns cinco (dentre eles uma mulher) policiais super becados, na estica, uniformes impecáveis, armados, levando um cara algemado do meu prédio!!!!!!!!!  O técnico da Verizon e eu ficamos deveras espantados, ele começa a trabalhar na instalação e resolve descer pra pegar outros equipam

Miscellaneous

Imagem
Impatients Tatuagens, além de dogs, são excelentes maneiras de fazer amigos e conhecer pessoas aqui nos EUA. OK, não se anime com o conceito da palavra amigo. É mais um modo de falar e ficar engraçadinho. Digamos que você trava polite and nice conversations com estranhos quando tem uma tatuagem visível. Ainda mais se ela tiver um quê enigmático como o meu OMMM estilizado no ombro direito. Poucas pessoas reconhecem o que o desenho é. Então se aproximam perguntando, puxando um papinho.  Foi assim outro dia no Home Depot , mais uma das megablaster lojas de ferramentas e apetrechos para deixar sua casa arrumadinha. Paraíso de Bernardo e Rômulo, que só faltam babar diante de tantas opções de chave de fenda, pra dizer o mínimo. A jovem e americaníssima caixa elogiou a tatuagem e indagou: Beautiful! What is your tatto? Respondi e entabulamos uma conversa de cinco minutos. Tempo suficiente para saber que ela já tatuou o corpo 16 vezes! E eu timidamente com quatro... Mas as del

Life is but a dream

Imagem
5.25 da manhã. For the very first time in this adventure of living abroad again, ouço os primeiros early birds, trinados simpáticos nos dias que já se anunciam mais curtos... Logo, logo o calor e umidade dignos de Rio de Janeiro darão lugar ao divinal outono. Tive muitos sonhos interessantes durante a noite. Quando a melatonina funciona é assim: dorme-se menos horas, mas o sono é fecundo.  Nas oniricidades pintaram a amiga Mônica (Marisa, não fique com ciúmes, pois você ainda é o meu alter ego onírico). Mas talvez a resiliência de Mônica seja mais carecida nesse momento. Ou apenas seja tudo culpa do livro que ela me deu um pouco antes da mudança:"A amiga genial". Um turbilhão de evocações infantis e seus sentimentos hiperbólicos. Maravilhoso para qualquer pisciana. No sonho de Mô, ela tinha um chevette psicodélico pintado com um sol que escorria raios do teto, abraçando toda a lataria. Será eu me despedindo do verão escaldante? Sonhei também com meu chefe e

News and memories

Imagem
Thanks God Today is Friday, dizem os americanos e eu concordo. A manhã chuvosa prometia temperatura mais amena - ufa - e, quem sabe, um refresco nas confusões dos últimos dias... Parei em Chappaqua (nome indígena), vilazinha onde mora a futura primeira mulher presidente dos EUA (assim esperamos). O lugar é um primor!Por aqui, estou no clima da convenção democrata. Assisti aos discursos de Obama, Clinton, da filha Chelsea e também de Hillary. Não por inteiro, pois eles começavam muito tarde na TV e trabalho de gata borralheira é pesado demais durante o dia! Decidi entrar numa Rite Aid (fármacia). Toda aquela parte de maquiagem linda na minha frente e eu sem saber nada sobre ela... Help me, amiga Denize Caribé! Quais são as melhores compras pelos menores preços?  Então tento pegar um batom da Cover Girl do mostruário e quase o stand todo veio abaixo. Xi, mas quanta jequice... Prenúncio de mais um dia difícil? Ainda bem que não. Segui caminhando pela ruazinha principal

Animal bond

Imagem
Aventura de hoje começou com Romulito deixando Lady Frida, nem tão lady assim, rolar em cima de um côco alheio. Há muito ela não fazia isso, só que està estranhando a redondeza, assim como nós... Daí, ela ficou insuportavelmente fedida. Deixei o maridones na IBM, depois de descarregar os guris no Summer Day Camp, e fui atrás de um pet shop que desse banho... Não sei por qual esquisito motivo, duas grandes lojas que oferecem o serviço (que tem o nome de grooming) não estavam abertas para banhos e tosas today. Aí me falaram de mais uma,a PetCo, e eu fui até lá.  A funcionária, simpática, disse que estava completamente lotado. Eu tive de implorar exercendo todo o meu poder de persuasão em English. Bem, ela deve ter ficado com pena de mim ou do meu inglês e topou. Falou para eu retornar com a Frida às 11 sharp e que ela teria de ficar no canil esperando uma brecha. Pediu que eu levasse toda a documentação da cachorrinha também.  Resolvi voltar com a Frida caminhando, para que

Welcome aboard!

Imagem
Encontro bacana com os amigos de Floripa que estavam passando férias em NY Muitos amigos talvez não saibam que essa é a segunda vez que estamos morando no estado de NY. Da primeira, não tínhamos filhos ainda, o que facilitava bastante a vida! :) O visto que Bernardo obteve da primeira vez foi o J1 (e o meu J2), chancela autorizada para pesquisadores; para intercâmbio de conhecimento. Por isso, costumava brincar que éramos os Jecas 1 e 2. Agora temos jequinhas que estão vendo os pais cometerem jequices...  Vocês pensam que é piece of cake mudar de mentalidade, de cultura, de hemisfério, sem cometer nenhuma idiotice completa? Hoje, por exemplo, o carro alugado amanheceu com a bateria arriada. Logo hoje, que Tomás tinha o passeio mais aguardado do Summer Camp: um parque aquático. Lá fui eu ligar para um táxi e me fazer entender... Depois de minutos intermináveis, consegui deixar os dois no Summer Camp e Tomasito foi splash...  O começo é assim: sempre truncado, c

Crente que é Clarice (o texto)

Imagem
“Escrevo pela incapacidade de entender sem ser através do processo de escrever”. (Clarice Lispector) "Calmo, específico, genérico". Eis o laudo psiquiátrico do preso que nos escreve. Aproprio-me do resultado. Nesse momento estou específica e genérica porque nada é mais paradoxal. Calma, não sei. Melancólica, certamente. Especificamente o que faz a gente criar conexões reais com outras pessoas? A questão me intriga desde ontem à noite, quando recebi uma mensagem de antiga colega de trabalho. A convivência foi curta em contagem de tempo, mas deixou plantado o afeto que só me dei conta com a grata surpresa dela. Estranho os caminhos da afeição... Nunca fiz o tipo popular, apesar de nunca ter me faltado amigos. Minha crença é que sempre assusto mais do que agrego. Tenho espinhos tão pontudos! Mecanismos de defesa nefastos. Cachorro que late e morde. Lanço palavras como balas dum-dum no coração de gente de bem.  Mas eis que alguns bandeirantes me

Incompletude

Imagem
Sensação paralisante de estar esquecendo algo ou alguém importante. Como a tia mais amada que não está em nenhuma das fotos do álbum de casamento. Há coisas que não podem ser reparadas ou rebobinadas e o sentimento de irreversibilidade acua, amedronta.  Partir para o desconhecido nos coloca nesse momento-limite da divisão entre o antes e o depois. Nada, nada mesmo será como outrora. E por isso o outrora parece tão aconchegante, ainda que não seja. E o futuro parece tão apavorante, ainda que tenha tudo para não ser.  A dor no peito é quase real. As células do músculo cardíaco morrendo no sufoco da angústia. A decisão revolucionária de fechar a porta do lar e morar fora do país encontra paralelo com a gravidez (outro ato de extrema insanidade, sem chance de recuperação).  Todo mundo tem uma palavra amiga para dizer nessas horas. Todo mundo diz “tudo vai dar certo”, “vai ser ótimo”, “incrível”, “muito bom para vocês”, “queria estar no seu lugar”. “sua vida vai mudar

Cinco vezes mais rica

Imagem
A chateação de uma ida ao cartório teria de ser recompensada de algum modo. O sebo estava ali do lado, recordou. O que são uns minutinhos a mais numa segunda fria? Entrou e bateu os olhos em um livro infanto-juvenil de capa azul: Ei! Tem alguém aí?. Pareceu-lhe promissor.  Seguiu a ziguezaguear pelas estantes atulhadas. Há alguma ordem por gêneros literários no Pindorama, mas a verdade é que há livros demais no mundo. E na hora que você quer lembrar de um título ou autor, quem disse?  Mas é legal não ter ideia pré-concebida também. Se saltar na sua frente é porque tem de ser seu (essas coisas que só quem crê em conexões telúricas diria). Respeitando a premissa, quase agarrou “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, da Clarice. Deu vontade, mas reconsiderou. O que lhe falta ler é “Laços de Família”. E ele não estava se exibindo no momento.  Daí viu “A Asa Esquerda do Anjo”, da Lya Luft. Sempre curtiu esse título bem bolado. Não resistiu e abraçou o exemplar ju

Indivisível

Imagem
Semana que findou tive duas experiências espirituais distintas, mas ambas de grande delicadeza e aprendizado. Na missa de Sétimo Dia da morte do meu cunhado Jairo, fui surpreendida pela homilia de ninguém menos do que Dom Terra. Já havia ouvido falar muito dele, principalmente depois que conheci a amiga Carmem Cecília. Não o reconheci, mas comentei ao pé do ouvido com o marido enquanto aquele ancião falava coisas sábias ali na frente: “fazia tempo que não participava de sermão tão interessante e culto”. Depois vim a saber que se tratava de Dom Terra, um homem que tem o tamanho de seu sobrenome, tendo vivido no oriente e de lá trazido uma espiritualidade mais global, que difere muito das apresentadas pelos padres tradicionais. E ontem, domingo, estava dentro de uma igreja evangélica, a convite de outra amiga, Juliana Tavares, que junto com uma orquestra, louvou ao Senhor aos acordes de violinos, fagote e violoncelos. Arranjos suaves e bem executados a glorificar uma

Alvissareiro

Imagem
Pelos corredores do subsolo vislumbro a figura de um ser alienígena descendo a rampa. Uma criança caminha displicente, balançando o que seria uma lancheira. Um guri de uns sete, oito anos às oito da manhã nos corredores sombrios dos subterrâneos do STJ.  Estou indo de encontro a ele. A gente chega quase juntos à bifurcação, mas ele toma a frente e segue corredor afora. Eu vou logo atrás e observo. Daqui a pouco ele dá meia volta e vem na minha direção. Percebo, enfim o emblema do que descubro ser um uniforme escolar. Ser míope nos força a ver a vida mais de perto. Se é bom ou ruim, não sei.  O bordado é para mim longo conhecido. Colégio Notre Dame! “Tudo bem com você, está perdido?” Desconfiado, ele balança negativamente a cabeça. “Sabia que eu estudei na sua escola quando eu era do seu tamanho?” Ele arregala os olhos e aponta para o emblema branco no fundo azul-marinho, buscando confirmação. (Na minha época a farda era vinho com amarelo, mas não vem ao caso).