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Mostrando postagens de setembro, 2014

Mimeógrafos

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“Escurece, e não me seduz tatear sequer uma lâmpada. Pois que aprouve ao dia findar, aceito a noite. E com ela aceito que brote uma ordem outra de seres e coisas não figuradas. Braços cruzados.” (Carlos Drummond de Andrade) Quando chego ao trabalho ela já está lá. Trocamos o automático bom-dia diariamente. Ela está sempre de cabelo preso, severo rabo de cavalo. Quase uma Marina Silva: entre a humildade e a altivez. Magra também é. Agora me ocorre que as existências exíguas demandam um corpo frágil. É mais difícil ser invisível aos gordos.  Queria entender dessas sombras. O que se passa na cabeça de quem faz todo dia tudo sempre igual. Como é que é permanecer horas em silêncio todas as manhãs, cumprindo a cota individual de fardo e obrigações em total anonimato. A impressão é que ela nem respira: vivência em suspenso ou em suspense.  Essas personagens de “O Turista Acidental” são fascinantes para mim. Atração mórbida pela dissolução, giz que se apaga,

Next Stop

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O alarme do carro no estacionamento dispara uma, duas ou três vezes. Seria um ótimo despertador se o relógio não marcasse 4h30 da madrugada. Quando não é o cérebro dela que cisma em sair do sono REM por livre e espontânea vontade no meio da noite, é a cidade quem decide acordá-la. Conspiração cósmica infernal.  Senta-se na cama com pena de si mesma. Fazia tempo que não incorporava o papel de vítima. Chora. Pensa que faz tempo que não chora. Os olhos sonolentos agora ardem e se envermelham. Está escuro lá fora e o calor já se anuncia.  Vê um pedaço de um filme. Assistir a trecho de histórias é uma obsessão.  E se... Confere. A narrativa reúne todos os freaks do planeta e sente que deveria estar no meio deles: os inadequados, os inadaptados, os marginalizados, outsiders, monstros. Continua representando o papel dramático egoico como há muito não encarnava. Copo meio vazio, sacas?  A Nicole Kidman é tão linda... Mas não queria estar na pele dela não. Apenas carreg

Meus sentimentos

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Defuntou. Bateu as botas. Foi para o céu (ou quiçá pro inferno). Está nas graças de Deus. Melhor do que a gente penando nesse calorão. Descansou. Entregou a alma. Abotoou o paletó. #Partiu!! Desde quando partir ganhou ares de coisa divertida? Mundo bizarro esse que o ir é mais legal do quer o ficar...  E nos cemitérios vemos de tudo. Ninguém mais faz cerimônia ou guarda formalidade perante o morto. De certa forma, é interessante a tendência contemporânea de dessacralizar a morte. Mas tirar foto de limousine fúnebre para postar no Instagran ou FB, ainda não tinha testemunhado não. O ato de compartilhar momentos virou prisão.  Faz tempo que me sinto íntima de velórios. Não, não... Recuso-me a ser confundida com uma carpideira. Tem gente que vê muita gente morta e não tem sexto sentido: essa sou eu. Desde pequena. De qualquer modo, poucas situações de vida são tão constrangedoras como ficar confinado neste espaço de dor, flores fedidas e pessoas desconhecidas que só se e

Quisera

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O carro para e a menina negra de uniforme atravessa a faixa. Traz na cabeça uma penca de trancinhas bem feitas presas em rabo de cavalo. A escola é pública, mas seus sonhos se escondem naqueles passos firmes, no olhar encarando o outro lado: o futuro.  A motorista do carro fica orgulhosa de si mesma, de um país fictício no qual as pessoas param na faixa para os pedestres passarem. Um país onde aquela menina negra seria igual à menina branca e mais além: numa nação na qual ela estaria segura para ir a pé para a escola, que é pública e boa; pública e digna.  Nos segundos que atravessam a mente da motorista e os pés da estudante, uma vontade de acreditar que o Brasil é de fato especial, ainda que compartilhe dos sentimentos da escritora Martha Medeiros em entrevista assistida um pouco antes de pegar no volante: “Especial, por quê? Eu quero é viver em um lugar no qual não precise colocar grade na frente do prédio; que eu possa passear sozinha às nove da noite pelas ruas

Inexorável

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O tempo singra e sangra perene, implacável. Torniquetes lhe fazem cócegas. Injeções de botox lhe paralisam em pequenas doses, mas as rachaduras do rosto e da alma seguem o caminho inexorável de suas próprias trajetórias. Caramba, quanta profundidade só porque o caçula perdeu seu primeiro dente de leite. Na marra, como se ele – o dente - também pretendesse frear o rumo dos acontecimentos que aí estão à nossa revelia.  Com bravura, suportou a imensa agulha da anestesia e a chateação da insensibilidade do lábio inferior. E lá estava o dentinho pequeno e alvo nas mãos dele e depois debaixo do travesseiro à espera da fada dos dentes importada e pouco crível. Resultado: os pais se esqueceram de deixar a moeda e o filho cobrou na manhã seguinte: “pode me dar agora, porque eu sei que vocês é que são a fada dos dentes”.  É tristinho quando eles vão perdendo a inocência diante dos nossos olhos... Quando a gente é criança nem repara quando deixar de ser. Mas se temos filhos,