Sem anestesia




Acabo de assistir a um filminho no FB que mostra vacas sendo libertadas no pasto depois de anos confinadas para produzir leite. Elas saltam eufóricas como crianças num parque... Talvez nunca tenha visto uma vaca nesse estado de felicidade. Sempre convivi com gado. Mas os rebanhos da minha infância eram criados livres no campo. Recolhidos de quando em quando apenas para vacinas, ordenha ou marcação. 

As vacas seriam enviadas para um abatedouro, pois o dono já não lucrava mais com a produção. Por isso, cidadãos conscientes de algum canto da Alemanha fundaram uma ONG a fim de livrar as vaquinhas do destino natural de virar bife ou strogonoff. Que lindo! 

No vídeo, a fundadora da ONG chora ao pensar que as vacas seriam mortas. E vendo esse filme eu só conseguia ficar mais revoltada com a morte daquela mãe-mulher-favelada - pariu quatro e criava mais quatro sobrinhos, arrastada pelas ruas do Rio por nossa Polícia Militar psicopata. 

Eu queria dar na cara da alemã civilizada tipo assim: se manca! Aqui no Brasil a PM joga seres humanos feridos no porta-malas do carro e, não satisfeita , ainda arrasta seus corpos pelo asfalto, num revival do que se fazia com alguns negros fujões na época da escravatura. 

Mas coitada da alemã civilizada. O que ela tem a ver com isso? Que culpa tem a moça se o país no qual nasceu já atravessou a Idade Média, a falta total de escrúpulos, a tortura, o horror, o horror? A Alemanha é um das nações mais bacanas do mundo. A galera de lá pode se preocupar com vaquinhas tristes e prisioneiras quando já não existem milhões de habitantes encarcerados em prisões institucionais ou nas comunidades-grilhões. 

Grávida do Rômulo de seis meses, abri o jornal na tela do computador e uma manchete estragaria o meu dia, a minha semana, a minha vida para sempre: um menino havia sido arrastado até morte pelo carro, preso ao cinto de segurança. Até hoje essa história me assombra, me dá engulhos. O insuportável daquela realidade me fez vomitar, perder o chão. Não pude mais trabalhar depois de me deparar com o máximo da vilania exposta na vitrine. Seria fruto do instinto maternal afloradíssimo ou apenas o manifesto de um ser humano gritando diante de tamanha crueldade? 

Agora, esse repeteco. Qual é a diferença entre o traficante que coloca fogo no jornalista Tim Lopes e o policial militar que atira numa mulher sem motivo e ainda arrasta seu corpo pelo caminho? O que fazer com essa corporação que produz um caso Amarildo por dia? Bandido de farda, alguns dizem. Como negar? O Brasil é um celeiro de realidades bizarras que nenhuma ficção suplanta. Sãos jogos mortais e vorazes na sua rua, no seu bairro, na sua cidade... Da hora que se acorda à hora que se deita. E ai do desavisado que cruza com a torpeza.

Hoje eu estou com muita vergonha de ser brasileira. De morar num país onde a polícia dá medo em gente de bem. Hoje eu sou um dos filhos adolescentes da mulher-mãe arrastada e morta como psicóticos costumam fazem com gatos e cachorros. Hoje, queria surtar e tirar unha por unha dos policiais que nunca experimentaram a civilização (inclusive dois envolvidos na nova barbárie de cada dia já respondem por crime de homicídio). 

Porém, para que eu própria não sucumba ao animalesco, ao inumano: escrevo. Choro e sinto dor. Dor real no estômago, no coração. Sem metáforas. 



Comentários

  1. Ai, Lulu. Você conseguiu traduzir um sentimento que compartilho. Histórias como a dessa mulher, a do menininho que você citou, a do índio Galdino e tantos outros que nós nunca sequer vamos ouvir falar são tão tão tão tão tão incrivelmente pavorosas que me faltam palavras. Prefiro nem ler (ver vídeo então, nunca) porque me faz um mal maior do que minha capacidade de abstração. Não entendo como alguns seres humanos conseguem ser tão ruins. Que Deus nos proteja deles. Bjs, Débora.

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  2. PS. Mas... Porque não protegeu os outros, né? Não sei. A vida não é justa.

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    1. É verdade, Deboratti querida, a vida não é mesmo nada justa. Que Deus nos proteja para que nunca cruzemos o caminho da torpeza. Amém! Namastê!

      Lulupisces.

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  3. Tá assustadora essa explosão de violência no Brasil!

    Maria Cruz

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  4. Naquela linha, curtindo sem curtir.

    Má.

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  5. A rede de violência está demais!
    Quando leio as notícias diárias, me sinto muito mal.Escolhi ficar mais seletiva, pois é muita coisa ruim que acontece, e os meios de comunicação
    parece que se deliciam em divulgar.
    Em contrapartida,existe muita coisa
    boa sendo feita, que não tem o seu devido lugar na mídia.
    Oro e medito pela paz , quanto mais pessoas fizerem isto, creio que a luz ficará mais forte e vencerá as sombras, despertando a consciência do que é bom, belo e justo...consciência gera consciência,luz atrai luz.
    Namastê!
    Cynthia

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  6. Bom Dia! Grata, Luciana, pelo texto, como sempre,tocante! No ponto exato do mote.

    Beijos,

    Guti

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  7. Concordo com quase tudo que foi dito, menos que alemão seja civilizado. Vai demorar uns 500 anos ainda para que um alemão possa ser considerado civilizado. Não dá para apagar o que eles fizeram assim de uma hora para outra. A gente pelo menos disfarça a violência. Eles cozinhavam gente viva.

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