O que Mandela nos diz sobre a tacanhice mental





Para Juliana, Maria Carolina e Priscila


Pois então morreu Mandela. Meu Invictus, Meu Captain, My Captain. Sabe aquelas pessoas que a gente gosta de graça e da graça? Pronto, era ele, esse neguinho! Familiar como um tio, surreal como um sonho. Partiu aos 95 anos como a minha madrinha. Negro como minha madrinha, insondável como ela. 

Mandela não foi herói ou gigante como as manchetes de jornais estampam. Era um cara cheio de problemas pessoais, família esfacelada, rancores. Menos deus, mais humano e, por isso, divino! 

Gandhi e Martin Luther King, que com Mandiba formam a tríade (Pai, Filho e Espírito Santo) da Humanidade moderna também foram pessoas que transbordaram para além de suas vidas íntimas imperfeitas e alcançaram a impecabilidade global, cósmica. Eles excederam a si mesmos e é isso que nos encanta e intriga: por que alguns conseguem e outros não? 

Mas, falando de racismo, a questão sempre me incomodou muito pela minha falta de compreensão sobre a sua natureza. As explicações racionais sobre a conjuntura histórica e social que forjaram este apartheid mundial (na África do Sul ele só é mais transparente) não me confortam. Por quê? Por que essa celeuma toda em torno de uma cor de pele? O negro, a encarnação do alienígena mal, alien, o oitavo passageiro? 

Cresci cercada por negros. A imagem de meu pai, mulato, que as fotos em preto e branco encarregaram de torná-lo mais negro no meu imaginário. Minha madrinha: negra. Minhas amigas da quadra: três irmãs negras. A "vó" Maria, velhota matuta adotada pela família, morava na fazenda e salvava as melhores goiabas para mim: negra de lenço branco na cabeça. 

A 715 sul era reduto de mestiços, pardos, pixains, curumins... Quadra classe média baixa. Cortiço efusivo. Eu tinha mãe branca de olho verde, tia loira de olho azul, mas isso era só um detalhe. Meu universo sempre foi miscigenado e, portanto, me soava natural como beber água. 

Quando me dei conta de que o racismo existia fiquei deveras atônita. Demorei um bocado para sacar o lance, sabe? As piadinhas idiotas com os que não tinham os meus cabelos lisos. A própria paranoia das minhas irmãs em alisar suas madeixas crespas com toucas e bobes... Flashes incipientes do grande monstro. 

Vou confessar uma coisa que até hoje me surpreende: eu só dei de cara com o racismo bem mais tarde, já na faculdade. Uma alienada? Não sei se dindinha era tão orgulhosa que jamais abaixou sua cabeça para ninguém ou se era impenetrável ao ponto de nunca ter transparecido suas dores, suas humilhações, pois, com certeza, foram inúmeras. 

Foi na faculdade de jornalismo, ao fazer amizade com outras três gurias negras, que comecei a ouvir relatos estarrecedores de límpido preconceito. Claro que desde pequena percebi a ausência de negros na minha aula de balé, de inglês, de espanhol, de natação; na escola particular, na UnB... 

A inexistência de negros na vida fora daquela tribo da 715 sul, pois todo o restante do círculo que eu frequentava, na verdade, não era o círculo-destino de uma menina classe média baixa: minha mãe fez um esforço danado para me dar uma educação de branco. 

As três mosqueteiras da faculdade privada me contavam coisas inacreditáveis como quando uma delas engravidou e ouviu: tomara que o neném nasça parecendo com o seu marido! Assim, a título de bons votos sorridentes, pois o marido dela, claro, é branquinho. Ou quando eu mesma ouvi, em Pelotas/RS, da boca de uma legítima gaúcha: “você parece a Camila Pitanga. Ela é uma negra que eu acho bonita”. 

A avó de Bernardo, da casta sarará do Piauí, ao me ver com o neto que fora loiro a vida toda, não demonstrou grande entusiasmo, evidentemente. Se eu realmente fosse linda como a Camila Pitanga não teria feito a menor diferença. “Uma moreninha com um loirinho”, foi o que ela me disse, assim, candidamente. 

Caramba, demorou, mas a ficha caiu. Ser preto é foda! Pedindo licença para existir e aguentando todo tipo de sarcasmo disfarçado de mal entendido e brincadeira. E o tempo passa, o tempo voa, Gandhi, King e Mandela fizeram o que fizeram e ainda hoje ela, a própria Camila Pitanga sai de cena para brilhar Fernanda Lima. Sem contar a tal escola de Guarulhos/SP, exigindo do aluno a poda (como se fosse um cachorrinho) do cabelo black power do menino. Racismo na raiz, de raiz... 

Mandela, Madiba, guie-nos nessa cegueira branca, nessa opacidade blondie! Ainda quero viver para assistir ao mundo enegrecer! Não é possível que a gente fique nesse plano por 80, 90 anos e não consiga ser um pouquinho estrela, um pouquinho gente! Amém! 

Comentários

  1. Com certeza, Lú, é muito triste, fora o problema entre as religiões, mas foi muito boa sua reflexão do seu blog. As pessoas precisam parar para pensar. Admiro muito o Mandela! Ontem, quando fiquei sabendo da sua passagem, logo pensei que um homem como esse deve ter sacrificado algum lado da sua vida. Imaginei que houvesse muitos problemas de ordem familiar... Mas como não conseguimos dar conta de tudo... O trabalho dele foi excelente!

    Bjcas e bom final de semana para vocês!

    Renata.

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  2. Parabéns pelo texto Lu, Mandela foi realmente uma figura "importante", lembra o que o Cortela disse no Eu Maior? toca fundo em nós, um ser que tem radiância, projeção percebida pelo coração..."quando eu me for não quero ser famoso quero ser importante "
    bj.Namastê!
    Cynthia

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