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Thanks for riding, Luciana!

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Contingências da rotina me levaram a experimentar as facilidades e excentricidades do Uber dias atrás. Três corridas, três personagens distintos como a vida. Interessante que dois deles eu encontrei num único dia, corroborando que o insólito está sempre lado a lado com a gente, ainda que morramos de tédio. Insólito seria um adjetivo um pouco exagerado, talvez estranho ou incomum. Ah, deixemos para lá e apresentemos o motorista W, que me buscou no meu futuro novo endereço no Lago Norte. A manhã estava resplandecente, o calor se anunciava em seu verão máximo. Do lado de fora não evidenciei nada exótico além de um adesivo chamativo fixado no vidro traseiro: “Por favor, não bata a porta”. Ou “Não bata a porta, por favor”. A memória dos ocorridos não está mais tão fresca. Dentro, percebi estar num dos automóveis mais detonados que já entrei, ainda mais para um Uber. O assento rasgado, cinto de segurança meio enguiçado. Carruagem mequetrefe, meio bamba. O motorista tinha um jeitão Robert

Tapete vermelho

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“Filmes são eles e a sua circunstância. Faz papel de ingênuo quem pensar que neste mundo conta apenas o mérito artístico.” (Ortega y Gasset) Fui uma cinéfila boa parte da vida. Não perdia os lançamentos, frequentava as salas da cidade, principalmente os cineclubes, religiosamente, semanalmente. Tinha um caderninho (talvez ainda esteja perdido nos guardados e eu volte a encontrá-lo) no qual anotava minhas impressões sobre os filmes e fazia minha própria cotação em estrelas. Reescrevia passagens dos diálogos ou de locuções que me encantavam. Acho que o meu lado escritora ainda não havia aflorado. Sem dúvida um grande passatempo. Faz bastante tempo que abandonei esses hábitos bacanas. Filhos, TV a cabo, preços exorbitantes dos ingressos, a queda dos cinemas de rua, das salas de exibição de filmes fora do circuitão… Nunca gostei de shoppings para nada, inclusive para ir ao cinema. Mas às vezes ainda saio da inércia para curtir uma telona, que tem o seu valor inestimável. As condições fís

Platão

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Contempla o teu viver que corre, escuta O teu ouro de dentro. É outro amarelo que te falo." (Hilda Hilst)  Do lado fora da caverna havia as borboletas amarelas do Rubem Braga. Mas antes delas, o céu azul de abril do Drummond, adiantado para março. Havia uma flor pregada no cabelo da árvore, pronta para receber Jonathan como Adélia. Um dente de leão solitário resistia à espera do amor de Mar Beck. O sol pincelado nas colunas de concreto, bandeiras estendidas, apátridas. Sem poesia engajado hoje, Maiakóvski!, alertaram. As cercas, quando existiam, eram vivas e nelas os pássaros, em coro, chamavam Manoel. Insetos já se organizavam para o leilão de jardim da Cecília, todavia, cotovia, onde se meteu o fantasma de Quintana? Sem ele não dá pra começar!, reclamaram os tatus bolinhas. E aí se lembraram que Maria Lúcia Alvim tava para as bandas de lá, batendo pasto, espantando os recalcados, na companhia da Fontela, pra cá da fonte adonde a Walker sentava esperando a chuva do caju. Enquan

Copo meio vazio

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Quando a água já passa do queixo e a atração da escuridão parece vencer a luta de braço com a luminosidade, eis o momento que é preciso decidir rapidamente. Lê no atual romance de cabeceira, que o coração meio vazio é a "essência do vício". O que se faz com esse sentimento que está entranhado em cada célula? Uma transfusão completa de sangue? Reencarnação? Escreve como se entornasse um litro de bourbon em minutos. Como se desintegrasse a pedra de crack. Não experimenta euforia ou passamento. As palavras não dão nenhum sossego. O mundo natural provê alívios regulares imprescindíveis e você quer sempre mais e mais. Inadaptados existenciais são viciados de uma ordem excruciante. Alguns desistem. Outros seguem buscando a cura inexistente. A tábua de salvação está sempre na próxima folha em branco. Arritmia  Nem óbvia tampouco over. Calor dos trópicos mosquitos, malditos mosquitos de todos os tipos doenças exóticas corrupção costumeira. Literatura gay tá on heteronormatividade t

Essas coisas todas

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Para Márcia Romão Recebi um TikTok de uma amiga da Associação das Bordadeiras de Penedo/AL e voltei duas décadas, relembrando uma historinha bacaninha vivida (e vívida) naquela cidade. Era 2004 e estava à espera do meu primeiro filho. Foi uma viagem meio sem sentido aquela, passando tão mal (talvez as passagens de avião já estivessem compradas). Só sei que foi assim, Bernardo e eu, os futuros pães de primeira marcha, perdidos numa noite de Natal em Maceió. Após uns dias na capital, começamos a explorar as redondezas. Alugamos um carro e partimos para Marechal Deodoro e Penedo sem nada saber delas - não eram tão banalizadas as informações naquele tempo que parece realmente longínquo. Que cidadezinha linda Penedo, toda colonial, às margens do mitológico Velho Chico. Quase me esqueci do tanto que enjoava, vomitava e me sentia fraquíssima. Não tinha disposição física, mas tudo ali me encantou. E me esforcei pra burro nas caminhadas. Um garoto logo se aprochegou na gente com autoridade de

Desavisado

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Ao contrário de tanta gente, ela não tem o costume de entrar no chuveiro assim que acorda. Prefere um banho noturno, relaxante, antes de dormir. Pela manhã não gosta de sacrificar minutos a mais no café-da-manhã saboreado com mais calma, geralmente sozinha, pois logo sai para o trabalho. Hoje fez diferente. Tomar uma ducha, se animar, é sexta, seu dia preferido, é Carnaval, feriadão, alguns bloquinhos, descanso ali no horizonte, desfrute. Da metade para o final da ducha, notou uma mancha no fundo da banheira ali do lado, Cinco graus de miopia, tudo que via era isso: um borrão. Nossa, está sujo, registrado. Pegou seu frasco de óleo corporal, uma mulher cremosa que não vive sem hidratação em profusão. A tampa do frasco caiu das mãos na banheira. A sujeira se mexeu. Deuses, ela se enrolou na toalha às pressas e vazou do banheiro. Ainda bem que o homem da casa ainda estava em casa. Homens da casa são imprescindíveis nesses raros momentos de covardia feminina. Olha, tem algo ali na banhei

Periodicamente

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Nas carótidas, o som da vida. Era o meu sangue em trânsito para um cérebro que lembra, acumula memórias nas quais não acredita. O ultrassom de hoje seria aquele do pequeno botão de flor nascendo no meu ventre? O som da vida do primeiro filho, fecundo na terra do meu útero? O útero assustado, renascido com a pergunta, contraiu-se. A mão alisou aquela lembrança perto do umbigo. Lágrimas fugiram dos olhos no escuro estéril da sala. Mãe é um maldita bênção, uma bendita maldição.